05 maio 2015

pequenos retalhos...



 ao longo destes anos os têxteis foram assumindo um papel importante nas formas que fui criando. tentei aproveitar quase tudo. muito pouco deitei fora. dei comigo muitas vezes a catar o próprio lixo do estúdio. porque além dos retalhos e tecidos que me davam, fui juntando os tecidos da avó, os retalhos da avó e mesmo aqueles retalhos minúsculos que sobravam desses outros retalhos que trabalhava. supostamente mal serviam para embrulhar um dedal ou fazer umas carapuças para o pardal, mas nunca, nenhum deles, fui capaz de deitar fora. 
 sem saber ao certo na altura para que iriam servir, apenas os guardei porque me custava olhar para eles sem conseguir ver outro caminho possível. e algo me dizia que um dia ia descobrir o que fazer. ao longo destes anos espalharam-se pelo chão muitos fragmentos de tecidos e linhas. e fui juntando em sacos de papel e em caixas de sapatos. em cada ano que passava foi crescendo a quantidade de fragmentos. em cada ano que passava perguntava, “Quando irei eu descobrir o que fazer com eles?”. 
 há cerca de 2 anos, no meio de arrumações no estúdio, re-descobri o conteúdo de alguns desses sacos e caixas de sapatos. espalhei esses fragmentos sobre a mesa e comecei a olhar para eles com outro olhar. esses momentos mágicos de criação não podemos dizer quando vão começar exactamente, mas percebemos o instante em que tudo começa a acontecer. e é tão bom quando somos capazes de nos surpreender. aguardo a chegada desse dia e pelo menos sei que vou sorrir e sentir que valeu a pena guardar estes retalhos todos estes anos. 
 acredito que são estes pequenos gestos que podem conduzir-nos a novos caminhos e descobertas. porque todos os pequenos gestos fazem parte de um todo. e se nem sempre percebi, quando o olhar ainda era pequenino, porque a avó guardava todos os retalhos, agora começo a descobrir. mesmo as roupas velhas eram enroladas e amarradas com atilhos. amontoadas num armário, como se pareceriam com embrulhos coloridos! e lembro-me que tentei desembrulhar alguns para ver o que tinham dentro. mas ao desenrolar essas pequenas trouxas descobria em muitas delas, em quase todas elas, apenas peças de roupa fragmentadas. às vezes faltava uma manga. ou faltava um bolso e os enchumaços tinham desaparecido quase todos. estavam reunidos numa gaveta. alguns desses embrulhos pareciam autênticos puzzles. peças de roupa fragmentadas em partes. bastava perceber em que lugar colocar e descobríamos o que tinham sido antes de ali chegar. nesses tempos os retalhos sempre serviam para alguma coisa. talvez isso também tenha passado para mim. talvez por isso também eu guardei os meus retalhos estes anos todos, porque vi a avó e a mãe a guardá-los também. quando o meu olhar ainda era pequenino nem sempre percebi o que os crescidos faziam. mas quando chegar a hora com certeza irei surpreender-me com o que irá nascer destes fragmentos de tecido guardados todos estes anos. e nesse dia vou sorrir e sentir que afinal fazia sentido e que sou igual à avó e à mãe.


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